31 de outubro de 2010

Vulnerabilidade

Um instante de dor súbita e foi o suficiente para que ela achasse que aquilo era o presságio de todo um futuro.

- Ai, meu Deus!

Hiperbolicamente efusiva, começou a desatinar uma série de repetições e citações que dariam náuseas a qualquer bom leitor. Lia, relia, mas continuava. Seu lápis não tinha freio, mas de repente decidiu cortar tantos adjetivos, advérbios, enxugar o texto que pingava literatice.

- Menina, perdeste a cabeça onde?! Trate de voltar a este planeta que por enquanto é aqui que vais ser alguém!

- Sim, senhora...

Dobrou os rabiscos feitos naquela requisição de exames e sussurrou qualquer coisa por entre os dentes.

Naquela tarde a agonia andava em loops de montanha russa e ora chegava a ebulir, ora formava estalactites. Precisava parar com extremos antes que enlouquecesse. Precisava e decidiu parar. Lembrou de uma música e repetiu como um mantra:

- Conhece-te a ti mesmo e eu me conheço bem! Eu me conheço bem, eu me conheço bem, eu me conheço BEM!

Como se isso fosse fazer alguma diferença naquela cabecinha oca infestada de teimosia. A avó, por exemplo, julgava ser caso perdido, “nem responsando Santo Antônio, meu Deus!”. Mas ainda havia quem apostava em um ímpeto de lucidez, desses que sacodem e dão um sopro de seriedade aos mimados:

- Vocês vão ver, um dia desses essa menina toma tenência e corre o risco de ter mais prudência que nós todos juntos, vocês vão ver só...

- Até parece... Como se já não tivesse idade suficiente pra isso! Mas não, sempre a mesma coisa, a mesma garota avoada que se perder a agenda, perde consigo um pulmão!

- Esperem, esperem, anda faltando é preocupação além dos livros, é isso que falta...

Aquele clima talvez fosse o propício, o clima de preocupações além dos livros previsto pela tia. Gotas de suor escorrendo pela testa que faziam com que ela já não agüentasse a guerra civil do seu cansaço com sua curiosidade, como se estivesse sendo repelida daquele habitat selvagem que era o hospital. Sentia-se onça, coruja, passarinho... E quando menos percebia, estava com a cabeça em vários lugares, menos ali, na enfermaria.

- Amália? Amália? Amááália, criatura, que há contigo?!

- Oi?! Não, nada!

- Preciso que tu segures a mão daquela paciente enquanto eu verifico a jejunostomia dela... Temos sinais de abdome agudo e talvez ela precise entrar ainda hoje no Centro Cirúrgico. Mas olha, estou te pedindo isso porque tu és assim sentimentalóide e ela precisa de alguém nesse momento: vai doer, vai doer bastante, está muito inflamado, necrosando, enfim... Segura a mão dela como se fosse a tua avó, ‘tá ouvindo?!

- Aham, sim.

Amália segurou a mão daquela paciente como se o gesto fosse bacteriostático pra’queles germes causadores da sepse, como se de uma vez só ela fosse capaz de aumentar o nível de albumina naquela velhinha já tão desnutrida, como se estivesse diminuindo o risco cirúrgico, como se fosse a própria responsável por dar um sopro de vida naquele leito.

Mas Amália espantava-se com a atitude e fáscie da paciente, Dona Maria. De todos ali, era a que aparentava mais serenidade, apesar das intervenções do médico, sem qualquer tipo de anestesia. Amália intrigara-se, mas ficou calada. Dona Maria notou certo espanto e havia escutado a recomendação do professor àquela aluna. Então, balbuciou baixinho palavras que as outras pessoas em volta não seriam capazes de entender, palavras meio faladas, meio olhadas... Palavras meio sentidas por ela, meio sentidas pela interlocutora; palavras que jamais sairiam da mente daquela aluna e que foram o tiro de revólver que deu a largada na corrida à vida adulta daquela menina... Palavras que Dona Maria sabia que precisavam ser ditas, que aquela menina precisava e inconscientemente queria ouvir:

- Sabe, eu já não tenho mais nem lágrimas p’ra chorar...

O resto da frase foi dito com o olhar das duas. Amália pela primeira vez não sabia o que dizia ou fazia, todo aquele ímpeto de garota espontânea foi seqüestrado por apenas algumas palavras. Envergonhada por ter lágrimas, saiu do quarto, encostou-se no corredor e chorou por ela, por Dona Maria e por todos aqueles que já não podiam, por todos esses e por muitos outros.


(Ficção?! Quem sabe...)


Um comentário:

Anônimo disse...

Nessas e em muitas outras horas tudo que a gente precisa é de alguém pra segurar a nossa mão. E aquilo muitas vezes é melhor pra quem segura nossa mão do que pra gente mesmo...

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